Quaresma. Gosto muito de muitas coisas no ?ltimo filme de Jos? ?lvaro de Morais: gosto que o t?tulo n?o prometa uma hist?ria e gosto que o filme n?o conte a hist?ria que o t?tulo n?o promete; gosto que Quaresma n?o seja uma galeria de personagens a marcharem todas na mesma direc??o, mas que seja um ponto de encontro (de lugares e de tempo) entre criaturas que se tocam e se desprendem, como nesses assombrosos planos do avi?o que transporta Ana (Beatriz Batarda), a aterrar e a levantar do pequeno aeroporto dinamarqu?s; gosto que o filme seja um poema, mas um poema exacto, um jogo arriscad?ssimo e sensual a desafiar a justeza dos planos, do que eles mostram e da forma como mostram; gosto dos personagens e dos actores que os fabricam e gosto, sobretudo, do enorme n?vel de concentra??o do filme, que se desprende dos corpos e contamina a luz e a paisagem; gosto que Quaresma seja um filme de celebra??o do cinema e dos seus poderes e sortil?gios, num tempo em que quase toda a gente parece ter esquecido (mesmo, ?s vezes, os melhores) o que isso quer dizer. Gosto ainda de ter a certeza que quem gostar de Quaresma ? por ter sido tocado pelo cinema de Jos? ?lvaro de Morais: como se pode ser tocado pela poesia de Pessoa, o cinema de Dreyer, Bergman ou Minnelli (refer?ncias que para aqui s?o chamadas), a pintura de C?zanne. E gosto, finalmente, que Quaresma seja um filme portugu?s.
Sabemos todos como ? cada vez mais dif?cil filmar. ? dif?cil, pelas raz?es do costume: por escassearem os meios e as vontades, por o p?blico ter sido chacinado pela ind?stria americana, por o cinema ter sido atirado para um po?o de amn?sia colectiva e por tudo isto ligado fazer parte de um complot inconsciente para acabar com a ?nica arte que a humanidade viu nascer. Mas ? tamb?m dif?cil filmar por cada vez mais coisas estarem a ser filmadas por linguagens que nada t?m que ver com o cinema (apesar de terem o seu aspecto). N?o basta que um filme exista para que o cinema exista com ele, como n?o basta um quadro ser pintado para a pintura ser. As fam?lias, as pessoas, as casas, os desejos e as frusta??es, as mem?rias, a morte... tudo coisas de que este filme est? cheio, fazem hoje parte do vocabul?rio da televis?o que se parece com o cinema e do cinema que se parece com a televis?o. Ora, ? por isso que, na sua imensa diferen?a, Quaresma ? um gesto violento de reconquista, de reocupa??o de um territ?rio que h? muito se julgava perdido: o territ?rio do cinema e do que por ele se reflecte e se projecta.
Projec??o ? o termo: ? para isso que o cinema existe. Para projectar as ac??es, as vozes e os sentimentos. Em Quaresma, tudo parece, no princ?pio, extremamente pequeno: um funeral na grande burguesia da prov?ncia, uma brincadeira entre primos, uma rapariga levemente "desajustada" e um homem que adia uma partida para Lisboa. No final, tudo isto ? grande: num molhe da Dinamarca, face ao mar do Norte, a rapariga escreve palavras misteriosas num di?rio, o homem que adiou a partida para Lisboa caminha no meio de moinhos de vento, a vida continua, mas marcada pela for?a de uma transcend?ncia que p?de acontecer. Como se chega do pequeno ao grande ? o mist?rio do filme. Um mist?rio raro e precioso que se chama cinema. Cinema que, neste filme, toma o nome de Quaresma.
Posted by jmgriloportugal
at 9:23 AM EST
Updated: Monday, 3 November 2003 2:54 AM EST