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Filmopolis
Sunday, 28 September 2003
O CINEMA DOS LIVROS
Congresso Literatura, Cinema e Filosofia
Faro, 1 de Outubro de 2003

Nesta curta interven??o, irei retomar um pequeno texto escrito em 1996 para um n?mero da revista Discursos, orientado pelo Prof. Carlos Reis, sobre a tem?tica "Cinema e Literatura". Esse texto intitulava-se O cinema n?o filma livros e se aqui o retomo ? por me ter dado conta que ele continua a reter, sete anos depois, o essencial do que penso sobre esta quest?o. Resulta claro que nada do que aqui vos vou dizer ? fruto de um programa de investiga??o espec?fico (embora muito eu respeite e admire as pessoas que se dedicam a t?o ?ridos estudos comparativos). Procurarei, apenas, restituir, na medida do poss?vel, o ponto de vista de algu?m que sempre olhou para esta problem?tica de modo remoto e algo desconfiado, ainda que empenhado em algumas quest?es colaterais, como se ver?. Aproveito, tamb?m, este momento, para colocar este conjunto de ideias em discuss?o, com colegas que v?m de outros campos disciplinares e de outras experi?ncas, e que, decerto, ver?o outras paisagens no mesmo horizonte. Essa discuss?o ?, de resto, o objectivo essencial e a raz?o de ser desta minha apresenta??o.

Para o dizer friamente, a problem?tica da adapta??o de obras liter?rias ao cinema tem sido, na sua pior vers?o - a mais institucional e politizada -, uma forma de afirmar, simultaneamente, a legitimidade de redu??o do cinema a um mero projecto narrativo, substanciado na forma do argumento e a conforma??o da an?lise do filme ?s ci?ncias que melhor souberam disciplinar o saber em torno da quest?o liter?ria (como as diferentes semiologias, por exemplo). Pergunta-se: que ter?, realmente, o cinema a ver com tudo isto? E falo aqui do cinema, no sentido de Deleuze, quer dizer, como "uma mat?ria sinal?tica que comporta tra?os moduladores de toda a esp?cie, sensoriais (visuais e sonoros), quin?sicos, intensivos, afectivos, r?tmicos, tonais, e mesmo verbais (orais e escritos)". Pergunta-se ent?o, repito: qual o n?vel de pertin?ncia de uma an?lise que "come?a" por ver um filme na depend?ncia de um objecto liter?rio?

Num texto maravilhoso, de simplicidade, clareza e inspira??o, escrito h? quase cinquenta anos - ?Pour un cin?ma impur; d?fense de l'adaptation? - e onde o problema de fundo era exactamente o mesmo, Andr? Bazin sugeriu, muito inteligentemente, que a ?nica verdadeira contribui??o da quest?o da adapta??o aos modelos de reflex?o sobre o cinema era tomar evidente e sublinhar at? que ponto ele (o cinema) era, sobretudo, uma "arte impura" e s? nesses termos poderia (e deveria) ser encarado. Um livro, um quadro, uma carta, uma fotografia, um epis?dio do real, um tra?o de mem?ria e, at? (e sobretudo), outro filme, s?o mat?rias que o cinema organiza e monta numa perspectiva especial: estabelecendo-lhes um tempo - uma dura??o, para sermos mais precisos - e pondo-as em movimento. Nenhuma delas ter?, por?m, qualquer import?ncia especial sobre as outras (e, de nenhuma maneira, a que lhe ? atribu?da pela hierarquia de um gen?rico); ? a forma da sua exist?ncia cinematogr?fica que interessa o cinema. Ser? leg?timo afirmar que as imensas diferen?as entre Madame Bovary de Renoir, o filme hom?nimo de Minnelli ou, ainda, Vale Abra?o, de Manoel de Oliveira, resultam de tr?s leituras do romance de Flaubert? E se assim n?o for - o que parece talvez ?bvio de mais - que margem atribuir a esse "efeito", aparentemente t?o determinante? Utilizando o mesmo exemplo, ser? que a rela??o entre Madame Bovary, que Flaubert publicou em 1857, e a 'adapta??o' realizada por Renoir ? mais forte do que entre Madame Bovary e, por exemplo, La R?gle du jeu? O que quero, com isto, salientar ? a extrema arbitrariedade que existe, de facto, em t?o grandes certezas. Regra geral, basta que um filme enuncie claramente que ? "adaptado de..." para que sobre ele penda, imediatamente, uma hipoteca identit?ria, com o seu ros?rio de especifica??es e - pior ainda - compara??es. Porque o grande desafio, entenda-se, n?o ? saber como estes filmes s?o parecidos, mas exactamente o contr?rio, isto ?, o que t?o gritantemente os separa e os torna t?o irredutivelmente diferentes.

A verdade, por?m, como lembra Bazin, ? que a esmagadora maioria dos filmes foram "adaptados" de obras liter?rias (lembre-se a pr?tica corrente em Hollywood, durante todo o per?odo cl?ssico, de compra das chamadas "propriedades liter?rias", antes mesmo que os respectivos contos, romances ou novelas conhecessem a publica??o... quando l? chegavam). Por raz?es muito suspeitas, convencionou-se que s? algumas dessas adapta??es mereciam esse estatuto e, por raz?es ainda mais suspeitas, considera-se que a maioria dessas ("leg?timas") adapta??es foram e s?o feitas a partir de "grandes" obras liter?rias, transformando o cinema em mais um pante?o imortal da grande literatura. Para todos os efeitos - e, principalmente, para os efeitos da hist?ria - Macbeth e Henry V s?o filmes "mais adaptados" do que Stagecoach (cujo argumento teve, por base, o folhetim ?Stage to Lordsburg?, de Emest Haycox) ou - para ficarmos por John Ford - My Darling Clementine (adaptado de ?Wyatt Earp, Frontier Marshall?, de Stuart Lake). H?, pois, uma perigosa ideologia, pretensamente "cultural", que se instalou no cinema - e n?o s? na cr?tica ou na teoria - a partir desta quest?o da adapta??o, sempre que por ela se pretenda designar um patrim?nio mais ou menos leg?timo que um filme "herda", em detrimento de outros patrim?nios e/ou de outros filmes.

Definidos, desta forma gen?rica, os par?metros da minha cr?tica ?s concep??es tradicionais da adapta??o cinematogr?fica, for?oso ser? admitir que o campo n?o deixa, por isso, de possuir um amplo interesse, principalmente se, ao consider?-lo, n?o se tentar a sua transforma??o naquilo que ele, manifestamente, n?o pode ser, isto ?, num princ?pio de descri??o ou explica??o do pr?prio cinema, no que ele tem de mais mais englobante e essencial, de mais impuro, para redizer Andr? Bazin.
Uma boa resposta metodol?gica a este impasse encontramo-la num dos mais brilhantes textos escritos sobre o cinema: refiro-me a ?Dickens, Griffith e o filme contempor?neo?, um dos ?ltimos trabalhos te?ricos de Eisenstein, datado de 1944, e que Jay Leyda incluiu, em boa hora, na c?lebre colect?nea p?stuma publicado em Nova lorque, em 1949, com o t?tulo Film Form. Prolongando as observa??es feitas no importante ?A Course in Treatment?, de 1932, sobre a adapta??o de An American Tragedy, de Theodore Dreiser, e ainda os cursos ministrados no VGIK (coligidos e editados por Vladimir Nijny), Eisenstein deixa bem claro que as raz?es por que um livro ? adaptado a um filme transcendem muito a dimens?o do pr?prio livro, enquanto objecto de fic??o e, muito mais ainda, enquanto objecto liter?rio. As raz?es por que Dickens est? presente no cinema de Criffith (e atrav?s dele e segundo Eisenstein - em todo o cinema americano) prende-se menos com a diferen?a espec?fica da escrita (afinal, Griffith nunca foi um "grande adaptador" de Dickens) mas com a forma como a constela??o Dickens (muito mais o imagin?rio do que a escrita) ?, j? em si, uma adapta??o (liter?ria) de uma certa vis?o do mundo e de um determinado conceito de vida. Deste decisivo ponto de vista, Intolerance era - e sigo, ainda, Eisenstein - um filme destinado ao "fracasso formal": simplesmente porque, pegando no poema de Walt Whitman, e transpondo-o para o ecr?, ?Criffith n?o foi capaz de entender a tradi??o de montagem de Whitman?, preferindo conformar o filme ? "forma-Dickens" que t?o bem conhecia e manipulava. Parece assim, que mais do que para a hist?ria do cinema, os filmes adaptados de obras liter?rias s?o, sobretudo, objectos extremamente interessantes para a hist?ria da literatura e para o modo como as suas formas transitam e comunicam entre escolas, ?pocas e autores extremamente (e surpreendentemente) diversos.

Julgo assim importante fixar duas ideias: a primeira tem a ver com o facto de o cinema n?o filmar livros... o que liga um cineasta contempor?neo aos Lumi?re ?, ainda, o facto de o cinema n?o se poder desprender de qualquer coisa que lhe ? absolutamente genu?no: a rela??o entre a c?mara e o que se lhe p?e defronte, que n?o ? (n?o pode ser), em qualquer caso, a literatura (na mais fiel adapta??o liter?ria feita pelo cinema - Greed, de Stroheim, a partir do romance hom?nimo de Frank Norris -, o que ? belo seguir ? a forma como o livro - imagem inicial - vai perdendo o seu estatuto de referente, ao longo do filme, devorado por uma constru??o visual que o ultrapassa e o esquece - literalmente; a segunda ideia - baziniana, digamos - tem a ver com a extrema utilidade que a quest?o da adapta??o tem para o cinema, enquanto for considerada n?o como um problema de fidelidade mas, justamente, de infidelidade, de impureza, de polui??o. Arte impura, por excel?ncia, realizando, mecanicamente, a pr?pria ess?ncia impura da arte (o seu destino de arte), o cinema ?, precisamente, o plano em que a literatura se pode pensar e ver na sua rela??o com todas as outras coisas e, tamb?m, com todas as outras artes, a come?ar pela pr?pria literatura. Ao filmar um texto liter?rio, um filme n?o pode evitar p?-lo em contacto/em confronto com uma vida que nunca foi a sua; e o que o cinema filma ?, exactamente, esse espa?o, essa diferen?a, esse confronto... que estar? sempre l? (espera-se) com literatura ou sem ela.

E termino, citando um curioso depoimento de Virg?lio Ferreira, inclu?do no mesmo volume da revista Discursos, sobre a adapta??o de Manuel Guimar?es, de C?ntico Final, um belo texto - exemplar, para o que vimos dizendo - e que o pr?prio definiu, no final, como "uma sauda??o a um amigo morto":
"Aquele dos meus livros que mais o entusiasmava para uma transposi??o f?lmica era Alegria Breve, a esse tempo comprometido com outro realizador que afinal o n?o utilizou. Mas se dentre todos os outros escolheu C?ntico Final, foi por ver a? um reflexo, como a mim pr?prio confessou, do seu destino de pintor. N?o bem um destino malogrado, j? que o de cineasta, apesar de tudo, se cumpriu, mas aquele que de todo o modo o acompanhou at? ? morte. Voca??o suplementar, mas nem por isso de desprezar pela obra realizada, a pintura fora nele o modo mais imediato de ?estar sozinho? como Caeiro, porque s? na sua prepara??o e montagem um filme ? para o realizador um modo de estar s?. E isto contra a excessiva companhia que as filmagens lhe infligem - desde os actores aos maquinismos, ao que de excessivo se tece durante essas mesmas filmagens, em ordens, coment?rios, mesmo em presen?as estranhas ? obra a realizar... E ? o que a um escritor, pintor ou compositor deve profundamente intrigar - a fixa??o do mundo da arte entre o mundo da mec?nica e do avulso imediatismo por onde n?o passa a transfigura??o.
Assim do livro ao filme n?o sinto que alguma coisa de fundamental se perdesse para a inten??o com que o realizei - como sinto que alguma coisa de novo se criou para l? da arte da imagem em que se transfigura. E se tal inten??o melhorou ou piorou para a sua perdurabilidade na emo??o do espectador, n?o me cabe a mim sab?-lo. De mim sei apenas que me revi a escrev?-lo ? medida que o ia vendo, para l? das altera??es da ordem em que o escrevi. Decerto eu estava cheio n?o bem daquilo que disse, mas do que desejei dizer; e ? poss?vel que esse excesso preenchesse os vazios que no filme possa haver. Mas isso ? a sorte de um qualquer escritor em face do que escreveu: cheio do que quer dizer, da intensidade com que isso vive, n?o lhe ? f?cil verificar o desencontro entre o que quis e o que realizou, entre a emo??o que o dominava e a sua transposi??o para o leitor, entre o que quis transmitir e os meios para o conseguir. Eis porque s? quando arrefecido o entusiasmo, distanciado o livro escrito, o autor pode um pouco avaliar dos dois elementos - o querer e o poder. Assim me permiti nesta ?ltima edi??o retocar a escrita aqui e ali". E restar? saber - porque o pr?prio texto o sugere, no seu elegante rendilhado - at? que ponto esta revis?o n?o foi parcialmente comandada pelo que do livro o escritor viu e n?o viu no filme, como imagem viva, experencial, dessa diferen?a entre o desejo e a sua improv?vel realiza??o.

Posted by jmgriloportugal at 8:07 PM EDT
Updated: Sunday, 28 September 2003 8:10 PM EDT

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