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Filmopolis
Sunday, 23 November 2003
AL?M-FRONTEIRAS

um modelo para a divulga??o internacional do cinema portugu?s
Hotel Real-Pal?cio, Lisboa, 19 de Novembro de 2003


O cinema portugu?s ? um assunto dif?cil e, at?, politicamente desconfort?vel e melindroso. Possa algu?m colocar-se na posi??o de um indiv?duo razoavelmente bem informado sobre a situa??o internacional do cinema e um conhecedor relativo da diversidade das suas propostas, ficar? chocado pelo contraste gritante entre a imagem e a reputa??o internacional do cinema portugu?s e a press?o pol?tica e social a que ele tem sido, ininterruptamente, sujeito, em Portugal, desde h? mais de vinte anos. Nalguns casos, mesmo, a hipocrisia pode chegar muito longe: quase todos os cineastas portugueses puderam j? testemunhar, in?meras vezes, discursos dos "seus" pol?ticos a defenderem posi??es internacionais sobre a "genialidade", o "exemplo" ou a "grandeza" do cinema portugu?s, que s?o depois incapazes de exprimir - como seria, seguramente, muito mais ?til - dentro do seu pr?prio pa?s.

Este amargo diagn?stico retrata bem o modo como o prest?gio internacional dos filmes portugueses e dos seus realizadores tem ferido, ?s vezes brutalmente, a sensibilidade de um mundo pol?tico habituado a encarar o cinema como um divertimento nacionalista e que tem, ao longo do tempo, exprimido a sua posi??o nessa rela??o atrav?s das maiores press?es poss?veis, sejam elas de natureza pol?tica, econ?mica, legislativa.

? uma situa??o que vem de longe. Que vem, por exemplo, da sombra de uma cinematografia med?ocre e recuada no tempo, periodicamente celebrada pelas televis?es e jogada, tamb?m periodicamente, contra o cinema portugu?s contempor?neo, por pol?ticos e comentadores de toda a esp?cie. Momento chave de viragem e ruptura ter? sido a apresenta??o p?blica, em 1971, do primeiro dos filmes sa?dos do protocolo firmado entre a Funda??o Gulbenkian e o rec?m-criado Centro Portugu?s de Cinema - O Passado e o Presente, de Manoel de Oliveira -, numa sess?o que contou ainda com a projec??o de um filme directamente encomendado pela Funda??o - A Pousada das Chagas, de Paulo Rocha. No discurso de abertura dessa sess?o, e em representa??o do CPC, o cineasta Fernando Lopes dilatava, inesperadamente, as margens da grande mudan?a que se preparava, ao dizer: "Hoje que o cinema passou o seu meio s?culo de exist?ncia e quando nomes como os de Griffith, Eisenstein, Murnau, Dreyer, Rossellini, Bergman, Jean Renoir ou Godard, se contam entre os valores mais importantes da cultura ocidental, ao lado de Joyce, Picasso e Stravinsky, n?s portugueses e cineastas come?amos a ver, com mais claridade e confian?a, o cinema, como facto cultural, reconhecido p?blica e oficialmente".

J? por v?rias vezes assinalei a import?ncia desta declara??o de Fernando Lopes e o modo como ela reivindicou para o Cinema Novo portugu?s um espa?o in?dito, cuja novidade ? dupla: porque se tratava de inscrever a cria??o cinematogr?fica portuguesa na hist?ria do cinema; porque se tratava, tamb?m, de a inscrever no movimento geral da cria??o art?stica internacional. Por essa dupla direc??o, ? uma declara??o que simboliza, ao mesmo tempo, o fim do cinema nacional - do cinema do Estado Novo - e o in?cio do que poderemos chamar de "cinema portugu?s".

Este movimento de "liberta??o" acentuou-se a partir de 1974. A curiosidade internacional sobre a situa??o pol?tica portuguesa atraiu o olhar dos media mundiais, embora n?o se possa dizer - e curiosamente - que tenha sido atrav?s do cinema militante ou mais directamente politizado que o cinema portugu?s tenha aberto as portas da Europa e do mundo. Independentemente de momentos e acontecimentos conjunturais importantes, ocorridos durante a d?cada de 60, ? f?cil apontar a divulga??o internacional de dois filmes portugueses, no final da d?cada de 70, como o momento de arranque desta grande curiosidade da cr?tica internacional por uma cinematografia que, pela sua raridade e pelas suas dificuldades de produ??o e circula??o, era, at? a?, praticamente desconhecida. Refiro-me a Amor de Perdi??o, de Manoel de Oliveira e a Tr?s-os-Montes, de Ant?nio Reis e Margarida Cordeiro. Numa cr?nica publicada na revista Cahiers du Cin?ma, em Abril de 1981, pelo influente cr?tico Serge Daney, era feito um resumo lapidar das raz?es que passaram a nortear o interesse internacional pelo cinema portugu?s: "Nenhum filme portugu?s tem condi??es para disputar p?blico aos filmes indianos (para n?o falar dos americanos) que enchem as salas de Lisboa. A situa??o ? ainda mais dif?cil por o cinema portugu?s, reduzido a seis filmes por ano, ser um cinema de autores, de inventores isolados, de `bricoleurs' obsessivos. O tra?o comum que liga os bons cineastas portugueses (de Oliveira a Reis, Paulo Rocha ou o rec?m chegado Jo?o Botelho) ? a sua integridade de artistas, no sentido mais rom?ntico do termo. ? tamb?m uma certa rela??o que eles estabeleceram com a hist?ria de Portugal, uma rela??o de luto, arqueol?gica, forte e surda. Se os cineastas portugueses n?o conseguiram falar bem e a quente do 25 de Abril (o melhor documento sobre essa ?poca - Torre Bela - ? da autoria de Thomas Harlan, um estrangeiro), t?m conseguido, em contrapartida, falar do passado com os meios mais modernos da sua arte".

? bem isto, ent?o, que passar? a estar em causa na qualidade paradigm?tica da "escola portuguesa", que muitos n?o hesitam em classificar como uma das ?ltimas grandes escolas (livres) de cinema do mundo. Liberto das press?es industriais, o cinema portugu?s singularizou-se em propostas extremas e em vocabul?rios formais que quase ningu?m, no mundo, ousa praticar. Os filmes s?o verdadeiros prot?tipos e ? nessa qualidade e nessa diferen?a que s?o recebidos e saudados nas Selec??es Oficiais dos maiores festivais de cinema: Cannes, Veneza, Berlim, Locarno, Nova Iorque, Toronto... Um pouco por todo o mundo s?o organizadas retrospectivas de autores (Oliveira, Paulo Rocha, C?sar Monteiro, Jo?o Botelho, Pedro Costa), ou mostras significativas do cinema portugu?s contempor?neo. Apesar da raridade da produ??o, n?o s? os filmes portugueses conseguem entradas em mostras extremamente selectivas como arrebatam pr?mios de extrema import?ncia (Oliveira, em Cannes e Veneza, Jo?o C?sar Monteiro, por duas vezes em Veneza).

Mais do que um cinema "resistente", a "excep??o portuguesa", como lhe chamou Roberto Turigliatto, organizador da importante mostra de Turim, em 1999, ? um cinematografia dissidente, que p?de recusar (pela fal?ncia do seu "projecto industrial") submeter-se aos modelos americanos e ? ideologia corporativa que lhe est? associada, optando por desenvolver - a par com outras cinematografias e outros cineastas, espalhados por todos os continentes - uma estrat?gia de combate pela afirma??o de um idioma pr?prio, que se expressa, antes de mais, na forma dos filmes e, s? depois, no imagin?rio que essas formas materializam. O cinema portugu?s n?o ? um cinema de actores, produtores ou promotores, mas um cinema de cineastas que cumpriram, integralmente, mas cada um ? sua maneira, o programa anunciado, h? mais de vinte anos, na declara??o de Fernando Lopes. ? um cinema de combate, tamb?m: combate contra Hollywood e os seus modelos de coloniza??o (na cria??o e na distribui??o) e combate, tamb?m, contra os seus agentes nacionais (tantas vezes, o pr?prio poder pol?tico), figuras pardas de um sistema que o cinema portugu?s nunca quis tomar como seu, recusando, nesse gesto, submeter-se ? sua hegemonia, ? sua linguagem, ? sua forma de contar o mundo, e recusando comprometer-se com essas imagens de ilus?o em que os dominadores se habituaram a ver e a rever, numa hist?ria circular e intermin?vel, as raz?es de ser da sua pr?pria domina??o.

Citando, a este respeito, o cineasta Jo?o Botelho: "H? uma coisa que nos distingue em rela??o aos outros: em Portugal, ainda n?o h? - felizmente, mas n?o sei por quanto tempo - o peso insuport?vel das regras de mercado. E outra, que n?o tem pre?o: a liberdade com que se trabalha. Embora pouco a pouco a tentem cortar, eu ainda sou respons?vel, nos meus filmes, por tudo o que de bom e de mau h? neles... Agora ? evidente, que n?o ? f?cil: quanto mais violento e independente ? um cineasta, mais as portas se fecham. H? uma tend?ncia, h? uma corrida para destruir essa liberdade, embora a ?nica verdadeira censura, seja a econ?mica... Porque a verdade ? que se o dito cinema comercial portugu?s funcionasse mesmo, n?s desaparec?amos. A ?nica raz?o que determinou e determina que o peso art?stico seja sempre maior do que o peso comercial ? simplesmente o facto de n?o haver mercado interno para absorver o investimento financeiro de um filme. Mas isto n?o ? s? portugu?s; ? de todo o cinema europeu. ? certo que h? marcas no nosso cinema, que t?m a ver com o modo de produ??o, a maneira como se faz e o poder que temos perante o trabalho. H? ainda um grande controlo do realizador sobre o trabalho e a cria??o; o que d? produtos estranhos, diferentes, fora dos formatos".

Se tomei a liberdade de fazer esta longa introdu??o sobre aquelas que me parecem ser algumas das caracter?sticas dominantes da produ??o portuguesa, foi para melhor precisar essa ideia essencial de que um filme portugu?s - nas actuais condi??es culturais do cinema internacional - n?o se basta a si pr?prio. E sobre isto n?o h? que ter qualquer d?vida: n?o chega projectar numa sala qualquer em qualquer ponto do mundo um filme portugu?s para que tudo quanto esse filme tem a dizer ?s pessoas fique dito. Por qu?, perguntam-me ? Bem, a resposta ? simples e todos n?s a conhecemos: poucos filmes feitos fora do modelo americano t?m hoje qualquer hip?tese de sobreviv?ncia cultural num mundo hegemonicamente dominado por esse modelo e pela sua forma de contar a hist?ria (todas as hist?rias). Dramaticamente, isto ? assim e ser? cada vez mais assim. Os n?meros s?o frios, mas eloquentes. Hollywood produz, por ano, cerca de 700 filmes, um n?mero sensivelmente id?ntico ao volume da produ??o europeia e, at?, ligeiramente, inferior ao da produ??o indiana. Estes 700 filmes s?o feitos, no entanto, com o dobro do dinheiro do resto de toda a produ??o mundial. A amortiza??o e o lucro deste gigantesco neg?cio deixou de ser, h? muito, uma quest?o dom?stica. Hollywood precisa de dominar (como domina) todo o mercado mundial. Pode, at?, perguntar-se que espa?o para a cultura pode ser reservado num neg?cio de 6 bili?es de euros anuais, o montante global das receitas de exporta??o da ind?stria cinematogr?fica americana, em 2000. E a situa??o ? ainda mais grave, porque, ao contr?rio do que se pensa, o cinema americano n?o ? o cinema que se faz na Am?rica. Bem pelo contr?rio, o conceito de na??o ?, mesmo, irrelevante para o cinema americano que, na verdade, se faz um pouco em todo o mundo e tem os seus agentes bem implantados no mundo pol?tico, no universo da produ??o e da distribui??o, nas escolas de cinema - que repetem, at? ? insensatez tecnocrata, as f?rmulas americanas de produzir e realizar cinema - e, principalmente, nas salas de cinema. ? exactamente este sentido hegem?nico da produ??o cinematogr?fica americana que faz dela uma arma fort?ssima na submiss?o dos imagin?rios nacionais e, at?, transculturais e transnacionais que se lhe op?em. Porque - entendamo-nos sobre este ponto - a quest?o no cinema ? sempre a de saber o que acontece no ecr?, quem l? est?, como est? e no lugar de quem est?. Ao falar-se de ind?stria, espect?culo, entretenimento, est? a falar-se, na realidade, deste modelo: em que os filmes t?m vedetas no lugar de pessoas reais, um modo de filmar comum a todos os filmes, independentemente dos mundos que retratam, de filmes feitos para agradar e produzir um p?blico j? constitu?do pelo cinema americano, e ao qual todas as cinematografias parecem ser for?adas a obedecer para poderem sobreviver. Qualquer filme feito com base em tais pressupostos far? parte, inevitavelmente, deste processo de hegemonia na representa??o do mundo, de que Hollywood, pelas raz?es que j? apontei, constitui uma pe?a log?stica fundamental. Roubando-nos os olhos, o Imp?rio rouba-nos a alma, pondo no lugar das nossas vacilantes e particulares utopias uma colec??o esfarrapada de imagin?rios de importa??o (narrativos e formais) prontos a vestir, a consumir e - seu supremo des?gnio - prontos a reproduzir-se e a reproduzir-nos.

Apesar disto, por?m, todos n?s reconhecemos as enormes potencialidades do cinema, como testemunho, como fundo hist?rico/documental, como elemento primordial de aproxima??o ? arte como, finalmente, vector privilegiado de consciencializa??o sobre a diversidade do mundo e a imagem de humanidade que nessa consci?ncia se projecta. Julgo que uma nova (e necess?ria) perspectiva sobre esta quest?o depende muito de uma outra vis?o sobre o que a hist?ria do cinema (e n?o s? do cinema portugu?s) e a verdadeira identidade do seu patrim?nio. Penso, neste contexto, que o grande erro do cinema europeu - e do cinema portugu?s - foi ter considerado (e continuar a considerar) os filmes como qualquer coisa de pens?vel e ger?vel em total separa??o do seu p?blico hist?rico, nesse contexto geral de deprecia??o dos valores culturais nos processos de educa??o no continente europeu, que parece estar, assim, condenado, pela falta de imagina??o dos seus dirigentes e pol?ticos, a ser um "continente t?cnico-profissional".

Projectada sobre a hist?ria do cinema, a vis?o europeia tem imediatas consequ?ncias: tratamos cada vez melhor dos nossos filmes, como pe?as de museu; cuidamos pessimamente da mem?ria do p?blico, como uma outra dimens?o (humana) desse patrim?nio. Penso assim que um novo contexto (muito mais diversificado) de exist?ncia do cinema deve partir da ideia que ? necess?rio cuidar t?o bem dos filmes como do olhar que o p?blico tem ou teve sobre eles. Fazer com que esse olhar integre o patrim?nio do cinema. Pens?-lo como um elemento fundamental de uma nova ideia de cinemateca.

Assim, entendo, n?o ser substancialmente diferente o que h? a fazer no mundo pelo cinema portugu?s do que h? a fazer dentro do nosso pr?prio pa?s: junto das escolas, nas autarquias, nos cineclubes, etc. Trata-se de inscrever o cinema portugu?s na agenda de uma pol?tica cultural que vise a forma??o, consolida??o e promo??o de uma cultura cinematogr?fica e nacional cujo aspecto essencial implica uma no??o mais alargada do que se considera ser o patrim?nio cinematogr?fico de uma dada cultura, neste caso, a portuguesa; este ? n?o s? constitu?do pelo universo dos criadores e das obras criadas, mas tamb?m, pelo p?blico e pelas formas como o p?blico de uma determinada ?poca for capaz de transmitir ?s gera??es seguintes uma ideia de cultura em que o cinema desempenhe - a par com outras artes - um papel importante e, at? pontualmente, decisivo.

Como se far? tal coisa, perguntam-me. Bem, em primeiro lugar, compreendendo o aspecto preciso e precioso de que se reveste a apresenta??o de um filme, a dimens?o singular desse acontecimento para as pessoas que o v?em e que, livremente, tomaram a op??o de o ver: decerto entre outras escolhas, muitas vezes com alguns pequenos sacrif?cios e contratempos nas suas vidas pessoais. O que se lhes pode dar ? Bem, a resposta talvez vos confunda: mas, precisamente, o mesmo que lhes d? o cinema americano: porque os filmes americanos tamb?m n?o se fazem e se mostram s? por causa do cinema, tamb?m eles precisam de ser promovidos, tamb?m eles precisam de atrair os seus espectadores, atrav?s do marketing e da publicidade (que absorvem mais de metade do or?amento da produ??o), tamb?m eles precisam de dirigir a aten??o das pessoas, pondo em evid?ncia, para cada caso, certos aspectos particulares: os actores, o g?nero, os efeitos especiais e por a? fora.

A pergunta que devemos seriamente colocar ? assim a de saber se no nosso cinema n?o teremos tamb?m n?s valores para p?r em evid?ncia. Seguramente que sim. Mas s?o outros valores: os nossos filmes s?o falados numa l?ngua de pouca circula??o, n?o possu?mos grandes aparatos de produ??o ou de marketing, n?o temos vedetas internacionais, nem procuramos uma rentabiliza??o desesperada no mercado. Temos, no entanto, para oferecer, uma cinematografia original, profundamente implicada com a nossa hist?ria e extremamente aberta aos seus sinais; temos uma cinematografia que responde excepcionalmente bem ?s interpela??es mais profundas da nossa pr?pria cultura, que nunca foi, exactamente, uma cultura da pura fic??o ou da ilus?o, mas, antes, uma cultura que se exprimiu, sobretudo, atrav?s da poesia e da cr?nica (Fern?o Lopes, Cam?es, Vieira, Pessoa). Temos uma cinematografia feita de filmes raros e muito diferentes, cada um deles pronunciando a sua rela??o ao pa?s, ao seu presente e ? sua hist?ria, com um vocabul?rio particular. Temos, finalmente, uma cinematografia que procura dialogar com um espectador que ?, para n?s, um ser vivo e n?o, apenas, o instrumento (ou o objecto) de uma ind?stria e de um neg?cio.

Reconhe?o que tudo isto ? importante - tudo isto faz parte dos valores que muitos de n?s nos habitu?mos a reconhecer no cinema -, mas que nada disto ? muito simples de apresentar ou, vamos l?, muito simples de "vender". N?o ? simples aqui, muito menos o ser?, al?m. Mas ? poss?vel: se tantos viram no cinema portugu?s os tra?os dessa "excep??o" que se chegou at? a admitir como uma das poucas esperan?as de resist?ncia ao receitu?rio americano, n?o ser? poss?vel mostrar essas tra?os a muitos outros ? Decerto que sim, mas tamb?m, decerto, que nada disto se far? sem trabalho e trabalho s?rio e a s?rio. Do que se trata ? de montar, lentamente, uma grande rede de cumplicidades e de a saber estender, conferindo-lhe, progressivamente, uma cada vez maior autonomia.

Permitia-me apontar dois n?veis, que podem servir como ponto de partida para uma discuss?o de um modelo de divulga??o internacional do cinema portugu?s:

- um primeiro n?vel diz respeito aos espectadores, a esse p?blico que se desloca a uma sala para ver um filme portugu?s, provavelmente, at?, um programa inteiro de filmes portugueses. ? preciso preservar esses espectadores, dialogar com eles, de uma certa forma, cultiv?-los. Esses espectadores n?o s?o n?meros de cadeiras, s?o pessoas que v?m a nossa casa; que escolheram a nossa casa, em vez de outra. Aproveite-se a oportunidade que nos deram e d?-se a esses espectadores um pouco mais do que a simples vis?o de um filme ou de um conjunto de filmes: em vez de pipocas, fale-se um pouco de Portugal, em vez da coca-cola, fale-se um pouco do cinema que c? existe, do modo como ele ? feito e dos valores que nele se expressam. Fale-se da sua diferen?a e das raz?es dessa diferen?a. Motive-se, finalmente, uma outra realidade do cinema, para al?m das suas fun??es de entretenimento, afinal de contas a realidade em nome da qual essas pessoas (pelo menos, uma parte delas) foram assistir a essa projec??o. Haver? nesses espectadores uma curiosidade pelo cinema (pela experi?ncia diversa do cinema), uma curiosidade por Portugal ou uma curiosidade pelo cinema portugu?s. Aprendamos que qualquer um destes interesses ? um ponto de partida excepcionalmente rico e motivador.

- um segundo n?vel, diz respeito ? pr?pria estrutura que suporta ou deve suportar este esfor?o. J? se disse, os filmes n?o podem ser simplesmente atirados para uma sala ou escolhidos ao acaso (por qualquer crit?rio disparatado: por serem os mais recentes, por exemplo). ? necess?rio um certo n?vel de concerta??o institucional, que passar?, for?osamente, pelos Minist?rios da Cultura e dos Neg?cios Estrangeiros, mas tamb?m pelo ICAM, pelo Instituto Cam?es, pela Cinemateca Portuguesa e, genericamente, pela mobiliza??o de todas as estruturas locais que suportem um interesse genu?no pela cultura portuguesa (universidades, por exemplo). Depois, ? necess?rio definir programas estrat?gicos de filmes, cujo crit?rio mais importante ?, sem d?vida, a oportunidade que oferecem para trabalhar sobre as suas rela??es. E este trabalho ? absolutamente decisivo; sem desvirtuar a originalidade de cada filme, ? preciso ter qualquer coisa para dizer sobre aquilo que os aproxima e afasta e ? preciso trabalhar sobre isso, a um n?vel absolutamente preciso, diria mesmo, did?ctico.

Com tudo isto quis dizer o muito que ? preciso trabalhar para p?r a dimens?o genu?na da cinematografia portuguesa a saltar ? vista dos que - pelas mais diferentes raz?es - a procuram. Esse trabalho ?, como j? disse e procurei demonstrar, um trabalho t?o complexo como o de vender qualquer filme americano. Cada um joga com as armas que tem (que s?o muito diferentes), no mercado que quer ou pode, legitimamente, disputar (a subalternidade). As nossas armas s?o umas e n?o outras. ?, simplesmente, preciso p?-las a mexer e a agir no contexto de uma estrat?gia global de promo??o mas, tamb?m sobretudo, de compreens?o e cumplicidade. Antes disso, por?m, ? preciso pensar. Creio que se pensarmos e fizermos bem, tal contribuir? para fazer de Portugal um pa?s mais interessante e partilh?vel, e do cinema um territ?rio mais rico, intenso e democr?tico. ? um jogo sem perdas e onde - creio - haver? muito da nossa identidade, universalidade e reputa??o a ganhar. Foi essa, afinal. a melhor (talvez a ?nica li??o) que o cinema americano nos foi dando durante a longa (e, por vezes, penosa) hist?ria da sua intransigente domina??o: na cultura, n?o h? nunca verdadeiramente nada a perder; ? s? preciso acreditar.




Posted by jmgriloportugal at 9:19 AM EST
ADEUS, XAVIER
Eu sei que talvez devesse aproveitar este espa?o para falar, esta semana, dos muitos filmes de que toda a gente fala e que v?o passando (mais ou menos meteoricamente) pelas salas portuguesas: s?o os ?ltimos dos irm?os Warchowski (Matrix Revolutions), de von Trier (Dogville), de Tarantino (Kill Bill), de Gus van Sant (Elephant) ou, mesmo, a obra-prima sui generis e admir?vel que ? India Song, de Marguerite Duras, que a Atalanta Filmes rep?s em c?pia nova, abrindo um ciclo dedicado ? obra not?vel desta n?o menos not?vel e singular?ssima cineasta. Em vez disso, por?m, vou aqui despedir-me de um filme que n?o sei quando tornarei (quando tornaremos) a ver: Xavier, o primeiro filme de Manuel Mozos, que estreou, vai para um m?s, e que ainda est? em exibi??o, por enquanto, numa ?nica sala de Lisboa e num ?nico hor?rio.

Xavier n?o merecia tal destino, embora, em boa verdade, se possa (e deva) dizer que ? o pa?s - que cada vez mais se estupidifica - que n?o merece tal filme. E Xavier at? esteve para nunca ser. Durante doze anos, Manuel Mozos lutou para conseguir que o seu filme sobrevivesse ? fal?ncia do co-produtor franc?s. Entretanto, chegou mesmo a estrear o seu segundo filme (Quando Troveja, em 1998), e n?o ? o menor dos sortil?gios que, num pa?s de raros filmes e raros cineastas, uma primeira-obra estreie depois da segunda. Isso marca bem uma diferen?a - o filme quase parece de "?poca" -, mas as diferen?as de Xavier n?o s?o realmente essas. J? antes de mim houve quem escrevesse que se Xavier tivesse estreado na altura em que foi feito, muita coisa podia ter mudado no cinema portugu?s. Porque Xavier - hist?ria de um rapaz (Pedro Hestnes) em rota de colis?o com uma cidade (Lisboa) - esconde, realmente, a promessa de um novo cinema novo portugu?s, o cinema de uma nova gera??o que ?, talvez, doze anos depois, o que mais falta nos faz.

E nada disto ? s? (sem o deixar de ser, completamente) por o filme tanto nos fazer lembrar a alma, o sangue, o nervo e o m?sculo de Verdes Anos, filme realizado por Paulo Rocha, h? quarenta anos, e que iniciou, ent?o, uma revolu??o radical no status quo apodrecido da cinematografia portuguesa da altura. Xavier ? um filme com um idioma pr?prio, sonhado e feito, totalmente, nas margens das imagens dominantes (mesmo as do cinema, para j? n?o falar das da televis?o), e que parte, solitariamente, ? descoberta de uma nova po?tica portuguesa, que n?o ? s? cinematogr?fica. Do filme, guardo muita coisa: por exemplo, o risco el?ptico e brutal, que fende o filme em liga??es surpreendentes, o "casal" Hestnes/Isabel Ruth (Laura, a m?e), a rela??o fraterna entre Xavier e Hip?lito, o fundo palpitante da cidade (soberbo o plano em que Xavier conserta uma antena num telhado de Alc?ntara). De tudo isso, no entanto, o que mais me fascina ? essa vontade de tecer todo um filme ? volta de um ?nico protagonista, um grande, paciente e magn?fico gesto de humildade, absolutamente incomum no cinema portugu?s, e que faz com que Xavier, apesar do atraso com que nos chega, mantenha, para sempre - sabemo-lo hoje - a for?a genu?na de uma mudan?a, que o filme nunca deixar? de ser, realmente. Foram doze anos; mas parece, apesar de tudo, que ainda ? tempo.

Posted by jmgriloportugal at 8:56 AM EST
Updated: Sunday, 23 November 2003 9:11 AM EST
SERPA 2003
Em 1987, Robert Kramer, um dos autores mais importantes do document?rio contempor?neo, realizou Doc's Kingdom, um filme parcialmente rodado em Portugal (interpretado, entre outros, por Ruy Furtado e Jo?o C?sar Monteiro). Em 2000, um ano ap?s o desaparecimento de Robert Kramer, a AporDoc (Associa??o pelo Document?rio) lan?ou, em Serpa, um outro Doc's Kingdom: a primeira edi??o do seu semin?rio internacional de document?rios, o qual, atrav?s do nome escolhido, procurou homenagear a personalidade e a filmografia de Robert Kramer. Apesar de o semin?rio ter adoptado, este ano, e provisoriamente, o formato "nacional", manteve a sua estrutura caracter?stica: projec??o de uma selec??o de document?rios em ante-estreia, seguida de debate (por vezes aceso) com a presen?a dos seus autores. No final, um debate aberto, centrado num t?pico preciso. Desta vez, a escolha recaiu sobre "O estado do document?rio em Portugal".

Por Serpa passaram, este ano, alguns dos mais recentes document?rios portugueses, com proveni?ncias e tem?ticas bastante heterog?neas. Houve um conjunto de document?rios sa?dos do Laborat?rio de Cria??o Cinematogr?fica da Universidade Nova de Lisboa (produzidos em associa??o com o Servi?o de Belas-Artes da Funda??o Gulbenkian), cada um deles centrado sobre o universo de um artista portugu?s: Pintura s/ t?tulo, de Lu?sa Homem, sobre Ant?nio Sena, Bitola, de Nuno Ventura Barbosa, sobre Francisco Tropa e Da Natureza das Coisas, filme autenticamente "radical" de Lu?s Miguel Correia sobre o trabalho do escultor Carlos Nogueira Ainda com alguma rela??o com o mesmo Laborat?rio de Cria??o Cinematogr?fica puderam ver-se Mercado do Bolh?o, de Renata Sancho (produ??o de "O Som e a F?ria"), um belo filme sobre a vida nesse mercado do Porto, e O que pode um rosto, de Susana Nobre, sobre a dif?cil e extrema luta pessoal dos doentes com cancro. Rabo de Peixe, de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, sobre a comunidade piscat?ria dessa vila a?oriana, o curioso Terra Longe, de Daniel-Emmanuel Thorbecke, sobre a vida na ilha do Fogo, Lisboetas, de S?rgio Tr?faut, um work in progress sobre os novos emigrantes de Lisboa e O arquitecto e a cidade velha, magn?fico e sereno document?rio de Catarina Alves Costa sobre o projecto de Siza Vieira para a recupera??o da Cidade Velha de Santiago, foram os outros t?tulos que remataram o Doc's deste ano, permitindo, desde logo, atestar a vitalidade do g?nero na cinematografia portuguesa, apesar do relativo aperto da produ??o e dos montantes dos respectivos financiamentos p?blicos.

A gravidade desta situa??o justifica que o debate final tenha sido invadido pela quest?o dos meios de produ??o e, mais em concreto, pela rela??o dif?cil entre o mundo do cinema e o mundo da televis?o (em especial, da televis?o p?blica) e pela baix?ssima cota??o em que esta mant?m o document?rio, bem ao inv?s da maioria das suas cong?neres europeias. Percebe-se a urg?ncia e a pertin?ncia do problema; entende-se pior que, sob o t?pico "O estado do document?rio em Portugal", haja t?o pouco para dizer sobre o documentarismo portugu?s. E percebe-se ainda menos porque, com maiores ou menores dificuldades, os documentaristas portugueses t?m produzido ao longo dos ?ltimos anos algum do melhor cinema que se tem feito em Portugal. Esta estranha obstina??o em "n?o pensar" para al?m (ou aqu?m) da quest?o dos meios de produ??o lan?ou alguma perplexidade (pessoal) no fecho do Doc's Kingdgom 2003... para todos os efeitos, uma ocasi?o soberana para pensar colectivamente o que se faz e em nome de que valores.

Posted by jmgriloportugal at 8:51 AM EST
Thursday, 6 November 2003
A IMAGEM DO POEMA
O seman?rio Expresso tem vindo a editar ao ritmo de um Canto por semana uma surpreendente vers?o de Os Lus?adas, de Lu?s de Cam?es. Trata-se de uma edi??o completa e complexa, composta pelo texto ?pico de Cam?es, uma "tradu??o" desse texto, est?ncia por est?ncia, em linguagem "corrente" (por qu? a op??o gr?fica "manuscrita"?), um gloss?rio bem organizado dessas express?es e termos que tanto dificultaram a compreens?o do poema a gera??es e gera??es de portugueses, um conto assinado por um escritor, de acordo com o material espec?fico de cada Canto e, finalmente, um conjunto exuberante e divertido de ilustra??es realizadas por Pedro Proen?a, que estiveram at? h? bem pouco tempo (e na totalidade do seu conjunto) em exposi??o no Centro Cultural de Bel?m. ? caso para dizer que se tudo isto nada fizer pela constru??o de uma nova rela??o entre o pa?s e o seu mais importante legado liter?rio e cultural, ent?o, provavelmente, nada o far?.

Independentemente, por?m, dos seus prop?sitos ou, at?, dos seus efeitos, a verdade ? que esta grande opera??o editorial acaba por ser uma "boa li??o para os pol?ticos" (e estou a citar o Dr. Dur?o Barroso, quando visitou a exposi??o) que t?m gerido o (pequeno) mundo da cultura portuguesa. Sempre prontos a atirar, dos gabinetes onde est?o encafuados, uma pedra "a quem passe", escudando-se na falta de p?blico para acusar os artistas e, genericamente, os agentes culturais do pa?s, n?o percebem os pol?ticos que n?o lhes d? isso raz?es de acusa??o mas, justamente, motivos para vergonha e das grandes. Porque de vergonha deviam corar os respons?veis culturais e educativos, ao ver esta edi??o de Os Lus?adas. Que t?m eles para lhe contrapor? A adapta??o infantil feita por Jo?o de Barros em "mil novecentos e troca o passo", com o Adamastor na capa (ainda hoje massivamente utilizada nas escolas p?blicas e privadas do pa?s), talvez alguns esfor?ados op?sculos explicativos, a c?lebre e traum?tica edi??o de capa de percalina vermelha e, sobretudo, o ?pico abandono (socialista, mas depois ratificado pelo governo PSD) do estudo do poema como mat?ria estruturante da aprendizagem da l?ngua e dos seus recursos expressivos, nos ensinos b?sico e secund?rio.

Bom, mas a raz?o que aqui traz estes Lus?adas n?o s?o as mis?rias dos governos que pagamos mas, antes (o que ? muito mais importante), a aud?cia de Pedro Proen?a, que aproveitou o poema para refazer a iconografia p?tria em 117 ilustra??es, 10 por cada canto e ainda v?rios e saborosos retratos do poeta. S?o imagens atravessadas pela ironia de onde n?o est? ausente a vontade de confrontar o poeta de todos os passados e futuros profetizados com a realidade do pa?s que temos e que os Lus?adas foram capazes de construir. Disse o pintor, numa afirma??o j? muito glosada a pretexto deste trabalho, que "um certo ar c?mico ? a maneira de falar de coisas s?rias, de cultivar o gosto pelos paradoxos e de desconfiar da forma institucional como a arte e os artistas se apresentam em sociedade". Se assim o pensa, melhor o fez. E eu acho que n?o desdenharia destas imagens o pr?prio Lu?s de Cam?es; ? que elas complementam, admiravelmente, na farsa, a ironia que o poema faz adivinhar nas suas desproporcionadas estrofes de gl?ria. Tem, assim, raz?o Alexandre Pomar, quando afirma que, "para um pintor que cultiva as fantasias visuais e narrativas, o camoniano desconcerto do mundo s? podia ser um estimulante desafio". Nem mais, como se v?.

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Updated: Sunday, 23 November 2003 8:47 AM EST
Sunday, 2 November 2003
KUBRICKIANA

A partir de hoje ? noite, e durante parte do m?s de Novembro, a Cinemateca Portuguesa ir? exibir uma retrospectiva (quase) integral da obra de Stanley Kubrick. Das treze longas-metragens realizadas pelo cineasta, em 50 anos de carreira, apenas n?o ser? exibida a primeira - Fear and Desire, de 1952 -, um filme renegado pelo realizador, que o classificou de "exerc?cio amador, completamente in?til, entediante e pretensioso". A falta de Fear and Desire - imposs?vel de ver, actualmente - ser? compensada, entretanto, pela inclus?o de duas curtas-metragens, Day of the Fight (1950) e The Flying Padre (1951), uma curiosidade a que haver? que acrescentar uma outra: o document?rio "autorizado" A life in pictures, revisita??o da vida e da obra de Kubrick, realizado por Jon Harlan (com a voz de Tom Cruise), filme que abrir? o ciclo, contando com a presen?a do realizador e um debate no final da sess?o.

Esta retrospectiva ? merecida e oportuna. Merecida, porque a obra de Kubrick ?, juntamente com a de Hitchcock, a ?nica que manteve uma cinefilia exterior ao pr?prio cinema, uma corte de seguidores e admiradores incondicionais que lhe emprestaram, ao longo do tempo (e, sobretudo, a partir de 2001, Odisseia no Espa?o), uma enorme popularidade. Oportuna, porque esta mesma popularidade tem algo de misterioso, desde logo por ser completamente indiferente (e, at?, avessa) a uma identifica??o de g?nero. Se Kubrick ? um cineasta, por vezes, muito amado, n?o ?, seguramente, por ser um realizador de fic??o cient?fica (2001) ou de filmes de guerra (Paths of Glory, Dr. Estranhoamor, Full Metal Jacket) ou de filmes de ?poca (Spartacus, Barry Lindon) ou de thrillers mais ou menos psicol?gicos (Killer's Kiss, The Killing, The Shining) ou mais ou menos er?ticos (Lolita, Laranja Mec?nica, Eyes Wide Shut). Suspeito pois - e esta retrospectiva talvez o confirme (da? a sua oportunidade) -, que a devo??o popular e cin?fila a Kubrick tem bastante que ver com o reconhecimento - t?o dif?cil, quase sempre - de um certo "estilo" e do que dele se pode esperar, independentemente do tema preciso do argumento ou do g?nero do filme. Num momento em que o cinema parece completamente balanceado do lado do espect?culo e do entertainment, esta sobreviv?ncia cin?fila de um autor ? mat?ria segura para uma reflex?o substancial e importante.

Para a solu??o deste "enigma", Gilles Deleuze adiantou uma solu??o hist?rica interessante, que pode ajudar a acompanhar o (re)visionamento destes filmes, ao classificar Kubrick como um dos cineastas (Hitchcock, Resnais) que desloca o essencial da comunica??o f?lmica, do corpo (do que um filme nos pode fazer sentir) para a mente. "Ao pensar na obra de Kubrick, v?-se at? que ponto ela corresponde a uma encena??o do pr?prio c?rebro. As atitudes do corpo podem atingir um paroxismo de viol?ncia, mas dependem sempre do c?rebro. Porque em Kubrick, o mundo ? um c?rebro; como na grande mesa circular e luminosa de Dr. Estranhoamor, o computador gigante (e o mon?lito) de 2001, o hotel Overlook, de Shining. Em Kubrick, h? uma renova??o do tema da viagem porque qualquer viagem no mundo passa a ser uma explora??o do c?rebro". Tanto A.I. (realizado por Spielberg, depois da morte de Kubrick) como o projecto - muito sonhado mas nunca realizado - de Napole?o fechariam, seguramente, este novo retrato mental do homem, como renascimento de uma velha personagem cinematogr?fica: n?s pr?prios, mais monstruosos e mais inquietantes.

Posted by jmgriloportugal at 9:40 AM EST
VEST?GIOS

J? aqui escrevi - a prop?sito de Inquietude - que a obra de Manoel de Oliveira configura, cada vez mais, a edifica??o de uma grande catedral g?tica, sem um plano r?gido, determinado ou predefinido, mas que se vai compondo, filme a filme, capela a capela, elaborando conex?es m?ltiplas e sempre surpreendentes, porque emergem das pr?prias formas e dos temas e causas que servem. E neste aspecto particular, a obra de Oliveira ?, verdadeiramente, uma obra ?nica. ?, por isto, curioso (mesmo, eloquente) que, num momento decisivo de Um Filme Falado, Oliveira filme o interior da Bas?lica de Santa Sofia, em Constantinopla, o templo da Humanidade que melhor simboliza esta montagem civilizacional, atrav?s das cicatrizes que o pr?prio espa?o exibe, na altern?ncia entre marcas crist?s e mu?ulmanas, seguindo as sucessivas e violentas ocupa??es da catedral, ao longo da hist?ria.

?, pois, muito alto o voo de Um filme falado; t?o alto, pelo menos, como o de Acto da Primavera, Non, ou a v? gl?ria de mandar ou Palavra e Utopia, vers?es ?picas desta grande arqueologia cinematogr?fica do homem, que Oliveira tem vindo a filmar, tamb?m em vers?o de "c?mara", em filmes como Viagem ao Princ?pio do Mundo, Porto da minha inf?ncia ou O princ?pio da incerteza, no momento em que se anuncia a produ??o, para o pr?ximo ano, de uma adapta??o da pe?a de Jos? R?gio "El-Rei D. Sebasti?o", mais que prov?vel grande ab?bada desta catedral em constru??o. Mas de que trata Um filme falado ? Da viagem de Rosa Maria (Leonor Silveira), uma professora de Hist?ria e da sua filha de oito anos, Maria Joana, pela bacia do Mediterr?neo at? ao mar Vermelho. Projectam encontrar-se, em Bombaim, com Jo?o, marido de Rosa, um piloto de avia??o. Aproveitam, ent?o, fazer a viagem por mar, num pregui?oso (mas alucinante) cruzeiro, o que lhes possibilita visitarem os grandes portos do Mediterr?neo e as civiliza??es que neles se expressam. Sucedem-se, assim, os lugares e os mitos que os fixaram: Lisboa, Ceuta, Marselha, N?poles e Pompeia, Atenas, as pir?mides do Egipto, Constantinopla, Aden. O pr?prio barco se transforma num desses lugares, j? que nele seguem tr?s mulheres de grande cultura: uma empres?ria francesa (Catherine Deneuve), uma modelo italiana (Stefania Sandrelli) e uma actiz grega (Irene Papas, deslumbrante), que, em dois longos jantares ? mesa do comandante (John Malkovich), dissertam sobre a hist?ria do mundo (e dos seus homens e mulheres) e sobre a evolu??o do "Ocidente" e dos seus paradoxos.

Filme sobre ru?nas e vest?gios, e sobre a sua montagem, Um filme falado vai-se assumindo, ele pr?prio, como um desses vest?gios, um momento de tr?nsito da viagem desses mundos pela hist?ria e que, atrav?s de Oliveira, cruzam, enfim, o cinema (por exemplo, em Atenas, na sequ?ncia da Acr?pole, ? imposs?vel n?o sentir a import?ncia do acto ?nico de fixa??o do monumento em pel?cula, por um dos poucos cineastas capazes de monumentalizar os seus planos.Mas Um filme falado ? menos um filme de monumentos do que um filme sobre os fantasmas que deles se libertam. ? por isso que, no seu desconcertante e catacl?smico final, Oliveira nos for?a a fazer, em dois segundos, o mesmo trajecto que, em sentido inverso, demorou 2000 anos a percorrer. Como o 11 de Setembro mostrou a um mundo perplexo, a hist?ria, afinal, ? s? um "bang"... um duplo "bang".

Posted by jmgriloportugal at 9:25 AM EST
Updated: Sunday, 2 November 2003 1:28 PM EST
O NOME DO CINEMA

Quaresma. Gosto muito de muitas coisas no ?ltimo filme de Jos? ?lvaro de Morais: gosto que o t?tulo n?o prometa uma hist?ria e gosto que o filme n?o conte a hist?ria que o t?tulo n?o promete; gosto que Quaresma n?o seja uma galeria de personagens a marcharem todas na mesma direc??o, mas que seja um ponto de encontro (de lugares e de tempo) entre criaturas que se tocam e se desprendem, como nesses assombrosos planos do avi?o que transporta Ana (Beatriz Batarda), a aterrar e a levantar do pequeno aeroporto dinamarqu?s; gosto que o filme seja um poema, mas um poema exacto, um jogo arriscad?ssimo e sensual a desafiar a justeza dos planos, do que eles mostram e da forma como mostram; gosto dos personagens e dos actores que os fabricam e gosto, sobretudo, do enorme n?vel de concentra??o do filme, que se desprende dos corpos e contamina a luz e a paisagem; gosto que Quaresma seja um filme de celebra??o do cinema e dos seus poderes e sortil?gios, num tempo em que quase toda a gente parece ter esquecido (mesmo, ?s vezes, os melhores) o que isso quer dizer. Gosto ainda de ter a certeza que quem gostar de Quaresma ? por ter sido tocado pelo cinema de Jos? ?lvaro de Morais: como se pode ser tocado pela poesia de Pessoa, o cinema de Dreyer, Bergman ou Minnelli (refer?ncias que para aqui s?o chamadas), a pintura de C?zanne. E gosto, finalmente, que Quaresma seja um filme portugu?s.

Sabemos todos como ? cada vez mais dif?cil filmar. ? dif?cil, pelas raz?es do costume: por escassearem os meios e as vontades, por o p?blico ter sido chacinado pela ind?stria americana, por o cinema ter sido atirado para um po?o de amn?sia colectiva e por tudo isto ligado fazer parte de um complot inconsciente para acabar com a ?nica arte que a humanidade viu nascer. Mas ? tamb?m dif?cil filmar por cada vez mais coisas estarem a ser filmadas por linguagens que nada t?m que ver com o cinema (apesar de terem o seu aspecto). N?o basta que um filme exista para que o cinema exista com ele, como n?o basta um quadro ser pintado para a pintura ser. As fam?lias, as pessoas, as casas, os desejos e as frusta??es, as mem?rias, a morte... tudo coisas de que este filme est? cheio, fazem hoje parte do vocabul?rio da televis?o que se parece com o cinema e do cinema que se parece com a televis?o. Ora, ? por isso que, na sua imensa diferen?a, Quaresma ? um gesto violento de reconquista, de reocupa??o de um territ?rio que h? muito se julgava perdido: o territ?rio do cinema e do que por ele se reflecte e se projecta.

Projec??o ? o termo: ? para isso que o cinema existe. Para projectar as ac??es, as vozes e os sentimentos. Em Quaresma, tudo parece, no princ?pio, extremamente pequeno: um funeral na grande burguesia da prov?ncia, uma brincadeira entre primos, uma rapariga levemente "desajustada" e um homem que adia uma partida para Lisboa. No final, tudo isto ? grande: num molhe da Dinamarca, face ao mar do Norte, a rapariga escreve palavras misteriosas num di?rio, o homem que adiou a partida para Lisboa caminha no meio de moinhos de vento, a vida continua, mas marcada pela for?a de uma transcend?ncia que p?de acontecer. Como se chega do pequeno ao grande ? o mist?rio do filme. Um mist?rio raro e precioso que se chama cinema. Cinema que, neste filme, toma o nome de Quaresma.

Posted by jmgriloportugal at 9:23 AM EST
Updated: Monday, 3 November 2003 2:54 AM EST
MAL AMADO


Com o desaparecimento, a semana passada, de Elia Kazan (na foto, dirigindo Marlon Brando), desapareceu uma figura importante da hist?ria do cinema e da hist?ria do cinema americano. Figura importante e, tamb?m controversa: por raz?es pol?ticas, como se sabe (ele foi um dos principais delatores ? Comiss?o de Actividades Anti-Americanas do Senador McCarthy), mas tamb?m por raz?es propriamente cinematogr?ficas e pelos caminhos (nem todos "brilhantes", ali?s) que abriram ? ind?stria americana, a viver, ent?o, na d?cada de 50, um decisivo momento de reconvers?o.

Grego de origem (Kazanjoglous era o seu nome verdadeiro), foi em Nova Iorque, na d?cada de 30 - ao lado de nomes como Lee Strasberg, Stella Adler, Clifford Odets -, que Kazan se envolveu com o teatro americano: primeiro como actor e assistente de cena do Group Theater, depois como fundador, com os seus colegas, do Actor's Studio, um revolucion?rio (para o tempo) laborat?rio de actores que transformaria o famoso M?todo de Stanislavsky e as suas defesas nas capacidades expressivas do actor num dos c?nones da moderna representa??o teatral e cinematogr?fica. Como o pr?prio Kazan explicou, o M?todo tratava de misturar a nitidez das ac??es, "controladas a cada segundo", com "a emo??o intensa e verdadeira do actor, ancorada no seu subconsciente e, muitas vezes, surpreendente na sua revela??o". O sucesso do Actor's Studio foi (? ainda) enorme, tendo-se celebrizado nas carreiras de Marlon Brando, Paul Newman, James Dean, Nathalie Wood, Marylin Monroe, Steve McQueen, Al Pacino, Robert De Niro...

Na sua migra??o do teatro para o cinema, Kazan transportou consigo o essencial destas convic??es na maleabilidade do actor e na sua capacidade de viver (e transmitir) em cena uma genu?na interioridade emocional. Porque o M?todo era, essencialmente, uma forma de ensinar modos de criar, disciplinar, conservar e transmitir uma determinada emo??o - de representar o pr?prio inconsciente. Tais pr?ticas deram, na obra de Kazan, um punhado de filmes incontorn?veis: H? Lodo no Cais (1954), A Leste do Para?so (1955), Baby Doll (1956), Rio Selvagem (1960), Esplendor na Relva (1961), ou O Compromisso (1969), filmes que lhe constru?ram (pelo menos, alguns) a reputa??o de fazedor - quase solit?rio - de uma nova gera??o de actores. Mas trouxeram, tamb?m, para dentro do cinema, formas de constru??o dram?tica completamente diferentes, muito mais centradas na figura do actor - na sua puls?o "hist?rica" - do que nas modalidades estritamente cinematogr?ficas de composi??o e montagem. Por isso, Howard Hawks - o mais cl?ssico dos cl?ssicos - o acusou de ter feito recuar a hist?ria do cinema, de pelo menos vinte anos.

Felizmente, que ao excesso de representa??o de Kazan respondeu, na mesma altura, o "neutralismo" e o cinema mental de Hitchcock. Porque, se ? verdade que Kazan, o mais mal amado dos cineastas, est? muito longe de ser um realizador desinteressante (at? por ser um dos que melhor filmou a dist?ncia abissal entre a realidade e o sonho na sociedade americana do p?s-guerra), n?o ? menos verdade que a heran?a do M?todo que tanto amou e defendeu se plasma hoje na mediocridade e no histrionismo da televis?o (das telenovelas aos telejornais) e, tamb?m (j? agora), nas m?ltiplas e detest?veis "escolas de actores e apresentadores" que, um pouco por todo o mundo, o preparam e fazem sobreviver. O que n?o ? s? uma heran?a pesada, mas injusta.

Posted by jmgriloportugal at 9:18 AM EST
Updated: Sunday, 2 November 2003 1:29 PM EST
DESCONVOCAT?RIA



Prezado Senhor Lu?s Felipe Scolari,

Acuso a recep??o da sua carta da passada semana, que o senhor teve a amabilidade de mandar colocar na minha caixa do correio (e, presumo, na "de todos os portugueses" a quem a carta se dirige), apesar do meu pr?dio ter afixado na porta que "n?o aceita publicidade n?o endere?ada". Notei, tamb?m, a exclusividade do sobrescrito de info mail (?), onde predomina a paisagem digital de um prado verde com algumas outras esp?cies vegetais e sobre a qual vem escrito, em letras de alarme, a frase "Portugal precisa de si!". Aberto o envelope, dou-me com uma carta personalizada com o que presumo ser o seu rosto estampado no canto esquerdo e algumas passagens manuscritas, onde o senhor Scolari se declara meu amigo, o que, desde j?, me sensibiliza e agrade?o.

Informa-me, ent?o, o senhor que vamos (quem?) entrar na fase final do UEFA EURO 2004 TM (presumo que o TM vale para Trade Mark, vulgo, marca comercial) e logo a seguir afirma, categoricamente, que Portugal e todos os portugueses "v?o estar em jogo". ?ptimo, pensei eu! Ora aqui est? finalmente algu?m com uma boa ideia: a de p?r um pa?s inteiro em jogo, de uma s? vez, em vez de andarmos a ser sangrados ?s pinguinhas, como manda a Dra. Manuela Ferreira Leite. Mas depois, lendo o conte?do da carta, percebi que o senhor Scolari ?, afinal, um "homem do futebol" e que era nessa qualidade que se estava a dirigir a todos os portugueses. Pensei, alarmado, que o senhor tinha enlouquecido, mas depois achei, at?, uma ideia excelente, isto de atrav?s de um info mail (que parece estar isento de portes) cada portugu?s (e mesmo outros n?o portugueses) se poder dirigir aos seus conterr?neos para dizer o que lhe vai na alma, se ? caso ou n?o para p?r o pa?s em jogo ou na penhora, dizer, enfim, o que muito bem lhe passar pela cabe?a.

Ora sobre isto tem o senhor Lu?s Felipe algumas ideias, especialmente uma curiosa obsess?o "virtual", que ? a raz?o porque lhe respondo nesta cr?nica. Diz o senhor que a vit?ria no tal jogo "passa por mostrar um Portugal moderno e empreendedor, por partilhar a riqueza e diversidade do pa?s com os milhares de turistas que nos v?o visitar", em suma - acrescenta e ilustra - passa "por mostrar Portugal ao mundo e receber calorosamente quem nos visita.". Tudo "passa", assim, por mostrar... um pa?s (rico e diverso) arranjado e bonito, onde as pessoas (ricas e diversas, mas talvez non troppo) se portem, essencialmente bem, com civilidade, calorosamente e, talvez at?, com algum aprumo. Depois oferece-me um autocolante que diz que "estou Convocado". Porra, amigo Scolari! Ser? que os seus patr?es n?o lhe explicaram, antes de o senhor escrever esta carta, em que ?guas chafurda o seu poema visual, que pa?s ? este que a sua imagina??o plantou num prado verde est?ril e sem vivalma? Ser? poss?vel que n?o lhe tenham dito quantos portugueses conheceram j? esse pa?s e quantos milh?es o tiveram que gramar durante meio s?culo?

Eu sei, senhor Scolari, que Portugal ? um pa?s sempre pronto a cobrir-se de rid?culo. N?o ? o senhor o ?nico a pensar isso. Mas tamb?m n?o vale a pena exagerar. E j? agora, para a pr?xima veja se escreve em papel reciclado. Eu sei que n?o ? t?o bonito nem a fotografia sai t?o bem. Mas lembre-se que, em terra de incendi?rios, 2 ou 3 milh?es de cartas ? muito papel e muita ?rvore.

Um seu desconvocado

Jo?o M?rio Grilo

Posted by jmgriloportugal at 9:13 AM EST
Updated: Sunday, 2 November 2003 9:14 AM EST
Sunday, 28 September 2003
O CINEMA DOS LIVROS
Congresso Literatura, Cinema e Filosofia
Faro, 1 de Outubro de 2003

Nesta curta interven??o, irei retomar um pequeno texto escrito em 1996 para um n?mero da revista Discursos, orientado pelo Prof. Carlos Reis, sobre a tem?tica "Cinema e Literatura". Esse texto intitulava-se O cinema n?o filma livros e se aqui o retomo ? por me ter dado conta que ele continua a reter, sete anos depois, o essencial do que penso sobre esta quest?o. Resulta claro que nada do que aqui vos vou dizer ? fruto de um programa de investiga??o espec?fico (embora muito eu respeite e admire as pessoas que se dedicam a t?o ?ridos estudos comparativos). Procurarei, apenas, restituir, na medida do poss?vel, o ponto de vista de algu?m que sempre olhou para esta problem?tica de modo remoto e algo desconfiado, ainda que empenhado em algumas quest?es colaterais, como se ver?. Aproveito, tamb?m, este momento, para colocar este conjunto de ideias em discuss?o, com colegas que v?m de outros campos disciplinares e de outras experi?ncas, e que, decerto, ver?o outras paisagens no mesmo horizonte. Essa discuss?o ?, de resto, o objectivo essencial e a raz?o de ser desta minha apresenta??o.

Para o dizer friamente, a problem?tica da adapta??o de obras liter?rias ao cinema tem sido, na sua pior vers?o - a mais institucional e politizada -, uma forma de afirmar, simultaneamente, a legitimidade de redu??o do cinema a um mero projecto narrativo, substanciado na forma do argumento e a conforma??o da an?lise do filme ?s ci?ncias que melhor souberam disciplinar o saber em torno da quest?o liter?ria (como as diferentes semiologias, por exemplo). Pergunta-se: que ter?, realmente, o cinema a ver com tudo isto? E falo aqui do cinema, no sentido de Deleuze, quer dizer, como "uma mat?ria sinal?tica que comporta tra?os moduladores de toda a esp?cie, sensoriais (visuais e sonoros), quin?sicos, intensivos, afectivos, r?tmicos, tonais, e mesmo verbais (orais e escritos)". Pergunta-se ent?o, repito: qual o n?vel de pertin?ncia de uma an?lise que "come?a" por ver um filme na depend?ncia de um objecto liter?rio?

Num texto maravilhoso, de simplicidade, clareza e inspira??o, escrito h? quase cinquenta anos - ?Pour un cin?ma impur; d?fense de l'adaptation? - e onde o problema de fundo era exactamente o mesmo, Andr? Bazin sugeriu, muito inteligentemente, que a ?nica verdadeira contribui??o da quest?o da adapta??o aos modelos de reflex?o sobre o cinema era tomar evidente e sublinhar at? que ponto ele (o cinema) era, sobretudo, uma "arte impura" e s? nesses termos poderia (e deveria) ser encarado. Um livro, um quadro, uma carta, uma fotografia, um epis?dio do real, um tra?o de mem?ria e, at? (e sobretudo), outro filme, s?o mat?rias que o cinema organiza e monta numa perspectiva especial: estabelecendo-lhes um tempo - uma dura??o, para sermos mais precisos - e pondo-as em movimento. Nenhuma delas ter?, por?m, qualquer import?ncia especial sobre as outras (e, de nenhuma maneira, a que lhe ? atribu?da pela hierarquia de um gen?rico); ? a forma da sua exist?ncia cinematogr?fica que interessa o cinema. Ser? leg?timo afirmar que as imensas diferen?as entre Madame Bovary de Renoir, o filme hom?nimo de Minnelli ou, ainda, Vale Abra?o, de Manoel de Oliveira, resultam de tr?s leituras do romance de Flaubert? E se assim n?o for - o que parece talvez ?bvio de mais - que margem atribuir a esse "efeito", aparentemente t?o determinante? Utilizando o mesmo exemplo, ser? que a rela??o entre Madame Bovary, que Flaubert publicou em 1857, e a 'adapta??o' realizada por Renoir ? mais forte do que entre Madame Bovary e, por exemplo, La R?gle du jeu? O que quero, com isto, salientar ? a extrema arbitrariedade que existe, de facto, em t?o grandes certezas. Regra geral, basta que um filme enuncie claramente que ? "adaptado de..." para que sobre ele penda, imediatamente, uma hipoteca identit?ria, com o seu ros?rio de especifica??es e - pior ainda - compara??es. Porque o grande desafio, entenda-se, n?o ? saber como estes filmes s?o parecidos, mas exactamente o contr?rio, isto ?, o que t?o gritantemente os separa e os torna t?o irredutivelmente diferentes.

A verdade, por?m, como lembra Bazin, ? que a esmagadora maioria dos filmes foram "adaptados" de obras liter?rias (lembre-se a pr?tica corrente em Hollywood, durante todo o per?odo cl?ssico, de compra das chamadas "propriedades liter?rias", antes mesmo que os respectivos contos, romances ou novelas conhecessem a publica??o... quando l? chegavam). Por raz?es muito suspeitas, convencionou-se que s? algumas dessas adapta??es mereciam esse estatuto e, por raz?es ainda mais suspeitas, considera-se que a maioria dessas ("leg?timas") adapta??es foram e s?o feitas a partir de "grandes" obras liter?rias, transformando o cinema em mais um pante?o imortal da grande literatura. Para todos os efeitos - e, principalmente, para os efeitos da hist?ria - Macbeth e Henry V s?o filmes "mais adaptados" do que Stagecoach (cujo argumento teve, por base, o folhetim ?Stage to Lordsburg?, de Emest Haycox) ou - para ficarmos por John Ford - My Darling Clementine (adaptado de ?Wyatt Earp, Frontier Marshall?, de Stuart Lake). H?, pois, uma perigosa ideologia, pretensamente "cultural", que se instalou no cinema - e n?o s? na cr?tica ou na teoria - a partir desta quest?o da adapta??o, sempre que por ela se pretenda designar um patrim?nio mais ou menos leg?timo que um filme "herda", em detrimento de outros patrim?nios e/ou de outros filmes.

Definidos, desta forma gen?rica, os par?metros da minha cr?tica ?s concep??es tradicionais da adapta??o cinematogr?fica, for?oso ser? admitir que o campo n?o deixa, por isso, de possuir um amplo interesse, principalmente se, ao consider?-lo, n?o se tentar a sua transforma??o naquilo que ele, manifestamente, n?o pode ser, isto ?, num princ?pio de descri??o ou explica??o do pr?prio cinema, no que ele tem de mais mais englobante e essencial, de mais impuro, para redizer Andr? Bazin.
Uma boa resposta metodol?gica a este impasse encontramo-la num dos mais brilhantes textos escritos sobre o cinema: refiro-me a ?Dickens, Griffith e o filme contempor?neo?, um dos ?ltimos trabalhos te?ricos de Eisenstein, datado de 1944, e que Jay Leyda incluiu, em boa hora, na c?lebre colect?nea p?stuma publicado em Nova lorque, em 1949, com o t?tulo Film Form. Prolongando as observa??es feitas no importante ?A Course in Treatment?, de 1932, sobre a adapta??o de An American Tragedy, de Theodore Dreiser, e ainda os cursos ministrados no VGIK (coligidos e editados por Vladimir Nijny), Eisenstein deixa bem claro que as raz?es por que um livro ? adaptado a um filme transcendem muito a dimens?o do pr?prio livro, enquanto objecto de fic??o e, muito mais ainda, enquanto objecto liter?rio. As raz?es por que Dickens est? presente no cinema de Criffith (e atrav?s dele e segundo Eisenstein - em todo o cinema americano) prende-se menos com a diferen?a espec?fica da escrita (afinal, Griffith nunca foi um "grande adaptador" de Dickens) mas com a forma como a constela??o Dickens (muito mais o imagin?rio do que a escrita) ?, j? em si, uma adapta??o (liter?ria) de uma certa vis?o do mundo e de um determinado conceito de vida. Deste decisivo ponto de vista, Intolerance era - e sigo, ainda, Eisenstein - um filme destinado ao "fracasso formal": simplesmente porque, pegando no poema de Walt Whitman, e transpondo-o para o ecr?, ?Criffith n?o foi capaz de entender a tradi??o de montagem de Whitman?, preferindo conformar o filme ? "forma-Dickens" que t?o bem conhecia e manipulava. Parece assim, que mais do que para a hist?ria do cinema, os filmes adaptados de obras liter?rias s?o, sobretudo, objectos extremamente interessantes para a hist?ria da literatura e para o modo como as suas formas transitam e comunicam entre escolas, ?pocas e autores extremamente (e surpreendentemente) diversos.

Julgo assim importante fixar duas ideias: a primeira tem a ver com o facto de o cinema n?o filmar livros... o que liga um cineasta contempor?neo aos Lumi?re ?, ainda, o facto de o cinema n?o se poder desprender de qualquer coisa que lhe ? absolutamente genu?no: a rela??o entre a c?mara e o que se lhe p?e defronte, que n?o ? (n?o pode ser), em qualquer caso, a literatura (na mais fiel adapta??o liter?ria feita pelo cinema - Greed, de Stroheim, a partir do romance hom?nimo de Frank Norris -, o que ? belo seguir ? a forma como o livro - imagem inicial - vai perdendo o seu estatuto de referente, ao longo do filme, devorado por uma constru??o visual que o ultrapassa e o esquece - literalmente; a segunda ideia - baziniana, digamos - tem a ver com a extrema utilidade que a quest?o da adapta??o tem para o cinema, enquanto for considerada n?o como um problema de fidelidade mas, justamente, de infidelidade, de impureza, de polui??o. Arte impura, por excel?ncia, realizando, mecanicamente, a pr?pria ess?ncia impura da arte (o seu destino de arte), o cinema ?, precisamente, o plano em que a literatura se pode pensar e ver na sua rela??o com todas as outras coisas e, tamb?m, com todas as outras artes, a come?ar pela pr?pria literatura. Ao filmar um texto liter?rio, um filme n?o pode evitar p?-lo em contacto/em confronto com uma vida que nunca foi a sua; e o que o cinema filma ?, exactamente, esse espa?o, essa diferen?a, esse confronto... que estar? sempre l? (espera-se) com literatura ou sem ela.

E termino, citando um curioso depoimento de Virg?lio Ferreira, inclu?do no mesmo volume da revista Discursos, sobre a adapta??o de Manuel Guimar?es, de C?ntico Final, um belo texto - exemplar, para o que vimos dizendo - e que o pr?prio definiu, no final, como "uma sauda??o a um amigo morto":
"Aquele dos meus livros que mais o entusiasmava para uma transposi??o f?lmica era Alegria Breve, a esse tempo comprometido com outro realizador que afinal o n?o utilizou. Mas se dentre todos os outros escolheu C?ntico Final, foi por ver a? um reflexo, como a mim pr?prio confessou, do seu destino de pintor. N?o bem um destino malogrado, j? que o de cineasta, apesar de tudo, se cumpriu, mas aquele que de todo o modo o acompanhou at? ? morte. Voca??o suplementar, mas nem por isso de desprezar pela obra realizada, a pintura fora nele o modo mais imediato de ?estar sozinho? como Caeiro, porque s? na sua prepara??o e montagem um filme ? para o realizador um modo de estar s?. E isto contra a excessiva companhia que as filmagens lhe infligem - desde os actores aos maquinismos, ao que de excessivo se tece durante essas mesmas filmagens, em ordens, coment?rios, mesmo em presen?as estranhas ? obra a realizar... E ? o que a um escritor, pintor ou compositor deve profundamente intrigar - a fixa??o do mundo da arte entre o mundo da mec?nica e do avulso imediatismo por onde n?o passa a transfigura??o.
Assim do livro ao filme n?o sinto que alguma coisa de fundamental se perdesse para a inten??o com que o realizei - como sinto que alguma coisa de novo se criou para l? da arte da imagem em que se transfigura. E se tal inten??o melhorou ou piorou para a sua perdurabilidade na emo??o do espectador, n?o me cabe a mim sab?-lo. De mim sei apenas que me revi a escrev?-lo ? medida que o ia vendo, para l? das altera??es da ordem em que o escrevi. Decerto eu estava cheio n?o bem daquilo que disse, mas do que desejei dizer; e ? poss?vel que esse excesso preenchesse os vazios que no filme possa haver. Mas isso ? a sorte de um qualquer escritor em face do que escreveu: cheio do que quer dizer, da intensidade com que isso vive, n?o lhe ? f?cil verificar o desencontro entre o que quis e o que realizou, entre a emo??o que o dominava e a sua transposi??o para o leitor, entre o que quis transmitir e os meios para o conseguir. Eis porque s? quando arrefecido o entusiasmo, distanciado o livro escrito, o autor pode um pouco avaliar dos dois elementos - o querer e o poder. Assim me permiti nesta ?ltima edi??o retocar a escrita aqui e ali". E restar? saber - porque o pr?prio texto o sugere, no seu elegante rendilhado - at? que ponto esta revis?o n?o foi parcialmente comandada pelo que do livro o escritor viu e n?o viu no filme, como imagem viva, experencial, dessa diferen?a entre o desejo e a sua improv?vel realiza??o.

Posted by jmgriloportugal at 8:07 PM EDT
Updated: Sunday, 28 September 2003 8:10 PM EDT

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